O CÁLICE DE CHICO BUARQUE E GILBERTO GIL


A música tratada aqui é um grito em forma de poesia. Uma metáfora por completo, do título ao último verso.
Fala dos dramas, traumas, torturas e silêncio forçado na época da ditadura militar no Brasil ocorrida entre 1964 e 1985.

A autoria é de Chico Buarque e Gilberto Gil, e já no título, faz um jogo de palavras relacionando-o ao imperativo do verbo "calar": cale-se! O termo se refere à censura.

Gilberto Gil e Chico Buarque
Todo o refrão representa em cada verso as agonias sofridas por Jesus no calvário. Vale lembrar que o cálice, segundo a bíblia, simboliza o sangue do filho de Deus, mas na letra, nada mais é do um objeto repleto do sangue derramado das muitas vítimas torturadas pela repressão, bebida esta, bem difícil de se tragar para quem tinha que aceitar passivamente as condições de trabalho as quais se viam obrigados a suportar.

Embora silenciosos quando não silenciados, ainda restava nas pessoas a esperança e o desejo de poderem um dia falar, ainda que se sentissem um tanto quanto descrentes filhos de Maria, ou seja, "filhos da pátria".

A realidade mostrava homens sem direitos, calados por outros que pouco ou nada se importavam com a situação da classe operária.

Chico e Gil usam o pronome pessoal "eu" em um dos versos para de certa forma, gritarem seus sentimentos de revolta diante de tudo o que acontecia, tendo ambos de permanecerem calados.

Vale informar que as vítimas sofriam os mais terríveis atos de tortura, e algumas chegavam a perder o sentido com os dolorosos métodos a que eram submetidos por mãos de torturadores e repressores.

Métodos de tortura na época da ditadura militar
O sistema comparado a uma "porca", que de tanta corrupção, já não conseguia nem mais andar. Isso nos remete a um dos sete pecados capitais: a gula, outra referência aos textos bíblicos.

Ressalta ainda, a dificuldade em "abrir a porta" para a liberdade de expressão, esta presa em atos reprimidos e em palavras presas na garganta.

No verso "De que adianta ter boa vontade", os poetas fazem outra vez, referência a trechos do livro sagrado: "paz na terra aos homens de boa vontade", a ilusória paz que os bêbados procuravam encontrar nos bares das cidades.

Nos dois últimos versos, Chico e Gil encerram ao citarem os atos em resposta às torturas, nos quais os oprimidos queimavam óleo diesel e jogavam nas salas dos repressores, pois a fumaça os deixava embriagados. Alguns deles fingiam-se de mortos, assim, eram "esquecidos" pelos torturadores.

Veja o vídeo e a seguir, acompanhe a letra.


CÁLICE!

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

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